segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Contos do Stephen King - Primavera Vermelha




Jack Calcanhar-de-Mola...

Vi aquelas palavras no jornal hoje de manhã, por Deus, como elas me levam ao passado! Tudo aquilo aconteceu há oito anos, quase exatos. Certa vez, durante o episódio, vi-me da TV em cadeia nacional ― no Programa Walter Cronkite. Apenas um rosto que passou depressa ao fundo, por detrás do jornalista, mas minha família me identificou de imediato. Fizeram-me um chamado interurbano. Papai queria ouvir minha análise da situação; mostrou-se amistoso e entusiasmado, tratando-me em pé de igualdade, de homem para homem. Minha mãe queria apenas que eu voltasse para casa. 

Mas eu não queria voltar. Estava encantado.





Encantado por aquela primavera vermelha sombria e enevoada, pela sombra de morte violenta que rondava naquelas noites, oito anos atrás. A sombra de Jack Calcanhar-de-Mola.

Na Nova Inglaterra, chamam de primavera vermelha. Ninguém sabe por que; é apenas uma expressão empregada pelos habitantes mais antigos da região. Dizem que acontece uma vez em cada oito ou dez anos. O que aconteceu no Colégio de Professores New Sharon naquela específica primavera vermelha... também deve existir um ciclo para aquilo, mas se alguém sabe qual é, nunca revelou.

No New Sharon; a primavera vermelha teve início a 16 de março de 1968. Naquele dia, terminou o inverno mais frio dos últimos vinte anos. Chovia e era possível sentir-se o cheiro do mar trinta quilômetros a oeste do litoral. A neve, que em alguns lugares chegava a quase noventa centímetros de profundidade, começou a derreter e as calçadas do campus ficaram cobertas de lama. As esculturas de neve do Carnaval de Inverno, que tinham sido conservadas nítidas e bem delineadas durante dois meses pelas temperaturas bem inferiores a zero, começaram finalmente a derreter-se e perder a consistência. A caricatura de Lyndon Johnson em frente à sede da fraternidade Tep chorava lágrimas de neve derretida. A pomba em frente do Prashner Hall perdeu as penas congeladas e seu esqueleto de madeira compensada aparecia tristemente em vários pontos.

E quando a noite chegou trouxe consigo o nevoeiro, que se movimentava branco e silencioso ao longo das estreitas ruas e logradouros do campus. Os pinheiros na alameda arborizada furavam o nevoeiro como dedos apontados para cima e a névoa pairava, vagarosa como fumaça de cigarro, por baixo da ponte próxima aos velhos canhões da Guerra Civil. Parecia tornar as coisas estranhas, fantasmagóricas, mágicas. O viajante desavisado sairia da confusão brilhantemente iluminada e vibrante com o som da vitrola automática do Grinder, esperando encontrar o frio limpo e estrelado do inverno... e, ao invés disso, ver-se-ia subitamente num mundo silencioso e abafado de névoa branca, no qual o único som era o de seus próprios passos e o leve pingar da água nas velhas calhas. Quase esperava ver algum duende passar apressadamente, ou olhar para trás e verificar que o Grinder desaparecera, sumira, cedendo lugar a um panorama enevoado de charnecas e teixos; talvez um círculo druída ou uma cintilante reunião de fadas.

Naquele ano, a vitrola automática tocava "Love Is Blue". Tocava interminavelmente "Hey, Jude". Tocava também "Scarborough Fair".

E às onze e dez daquela noite, um aluno do penúltimo ano chamado John Dancey, no caminho de volta ao seu dormitório, começou a gritar no nevoeiro, largando os livros sobre as pernas da jovem que jazia morta num canto sombrio do estacionamento da ala de Ciências Animais, a garganta cortada de uma orelha à outra, mas os olhos abertos e parecendo quase brilharem como se ela tivesse acabado de fazer a pilhéria mais engraçada de sua curta vida. John Dancey, estudante de didática e oratória, gritou, gritou, gritou.

O dia seguinte foi nublado e ameaçador; fomos para as aulas com perguntas ansiosas na ponta da língua ― quem? por quê? quando acha que vão apanhá-lo? E a última pergunta, eletrizante: você a conhecia?

Sim, fiz um curso de arte com ela.

Sim, um dos amigos de meu companheiro de quarto saiu com ela no semestre passado.

Sim, ela me pediu fogo no Grinder, certa vez. Estava na mesa ao lado.

Sim.

Sim, eu.

Sim... sim... oh, sim, eu...

Todos nós a conhecíamos. Chamava-se Gale Cerman (pronunciado Kerrman) e ia diplomar-se em arte. Usava óculos do tipo "vovó" e tinha um belo corpo. Era querida mas suas colegas de quarto a detestavam. Nunca saía muito, embora fosse uma das garotas mais promíscuas do campus Era feia, mas engraçadinha. Fora uma moça ativa, cheia de vida, que falava pouco e raramente sorria. Estava grávida e sofria de leucemia.

Era lésbica e fora assassinada pelo namorado. Era primavera vermelha e, na manhã de 17 de março, todos nós conhecíamos Gale Cerman.

Meia dúzia de carros da polícia chegaram vagarosamente ao campus e a maioria deles estacionou em frente ao Judith Franklin Hall, onde residira a garota Cerman. Quando passei por lá a caminho da aula das dez horas, pediram-me que mostrasse minha carteira de identidade de estudante. Fui esperto. Mostrei ao policial a foto que não tinha presas de vampiro.

― Você anda com uma faca no bolso? ― indagou astuciosamente o guarda.

― É a respeito de Gale Cerman? ― indaguei, depois de afirmar que a coisa mais mortífera que carregava comigo era um chaveiro com pé de coelho.

― Por que pergunta? ― quis saber ele, com a avidez de um gato saltando sobre um camundongo.

Eu estava cinco minutos atrasado para a aula.

Era primavera vermelha e ninguém andou sozinho pelo compus meio acadêmico, meio fantástico, naquela noite. O nevoeiro descera outra vez, com cheiro de oceano, silencioso e profundo.

Por volta de nove horas, meu companheiro de quarto entrou correndo em nosso alojamento, onde eu estivera esquentando os miolos com um ensaio sobre Milton desde as sete horas.

― Eles o pegaram ― anunciou. ― Ouvi dizer lá no Grinder.

― Ouviu de quem?

― Não sei. Algum sujeito. O assassino foi o namorado dela. Chama-se Carl Amolara.

Recostei-me na cadeira, aliviado e desapontado. Com um nome como aquele, tinha que ser verdade. Um pequeno crime passional, sórdido e letal.

― Muito bem ― comentei. ― Ótimo.

Ele saiu do quarto para espalhar a notícia pelo prédio. Reli meu ensaio sobre Milton, não consegui perceber o que queria dizer, rasguei-o e recomecei tudo.

Apareceu nos jornais no dia seguinte. Havia uma foto incongruentemente nítida de Amalara ― provavelmente um retrato de formatura no ginásio ― que mostrava um rapaz de aparência um tanto tristonha, moreno, de cabelos escuros e marcas de catapora no nariz. Ainda não confessara o crime, mas existiam fortes indícios contra ele. Amalara e Gale Cerman haviam discutido muito no último mês e tinham rompido o namoro na semana anterior. O companheiro de quarto de Amalara dissera à polícia que este ficara "acabrunhado". Num baú embaixo de sua cama, a polícia encontrara uma faca de caça com dezesseis centímetros, marca L.L. Bean, e uma fotografia da pequena que, aparentemente, fora cortada com uma tesoura.

Ao lado da fotografia de Amalara, aparecia uma de Gale Cerman. Meio desfocada, mostrava um cão, um flamingo de jardim com plumagem na muda, e uma garota loura de ar assustado, usando óculos. Uma de suas mãos estava pousada na cabeça do cão. Era verdade, então. Tinha que ser verdade.

E naquela noite o nevoeiro veio mais uma vez, não com a delicadeza de um gatinho, mas esparramando-se silenciosamente com maus modos. Naquela noite, saí para andar.

Tinha dor de cabeça e caminhei para respirar o ar livre, sentindo o cheiro úmido e enevoado da primavera que eliminava lentamente a neve relutante, deixando à mostra trechos mortos da grama do ano anterior, nus e descobertos como a cabeça de uma idosa avó suspirante.

Para mim, foi uma das mais belas noites de que consigo lembrar-me. As pessoas por quem eu passava sob a luz difusa dos postes eram sombras murmurantes e todas elas pareciam apaixonadas, caminhando de mãos dadas e fitando-se nos olhos. A neve derretida pingava e escorria, de cada calha sombria erguia-se o som do mar, um escuro mar de inverno, que agora estava em plena maré vazante.

Andei até quase meia-noite, até ficar totalmente coberto de umidade, e passei por muitas sombras, escutei muitos passos ecoando sonhadoramente nas sendas sinuosas. Quem pode dizer que uma daquelas sombras não era o nome, ou a coisa, que se tornou conhecido por Jack Calcanhar-de-Mola? Eu não, pois passei por muitas sombras, mas, no nevoeiro, não enxerguei rostos.

Na manhã seguinte, fui despertado pelo clamor no corredor. Tropecei para fora do quarto a fim de verificar quem fora convocado para as forças armadas, ajeitando os cabelos com as mãos e passando pelo céu da boca a lagarta cabeluda que ladinamente substituíra minha língua.

― Ele pegou outra ― disse-me alguém, pálido de excitação. Tiveram que soltá-lo.

― Soltar quem?

― Amalara! ― exclamou alguém, cheio de satisfação. ― Ele estava na cadeia, quando aconteceu.

― Quando aconteceu o quê? ― indaguei, paciente.

Mais cedo ou mais tarde eu entenderia. Tinha certeza disso.

― O cara matou alguém ontem à noite. E agora estão procurando por toda parte.

― Procurando o quê?

O rosto pálido surgiu outra vez diante de mim.

― A cabeia dela. Quem a matou levou consigo a cabeça dela.

Hoje em dia, New Sharon não é um colégio grande e era ainda menor naquela época ― o tipo de instituição de ensino que o pessoal de relações públicas costuma chamar familiarmente de "colégio comunitário". E era realmente como uma pequena comunidade, ao menos naqueles dias; entre os alunos e seus amigos, era provável que ao menos cumprimentassem com a cabeça todos os outros e os amigos deles. Gale Cerman era o tipo de garota a quem apenas se cumprimentava com a cabeça, pensando vagamente já tê-la visto em algum lugar.

Todos nós conhecíamos Ann Bray. Tirara o segundo lugar no concurso de Miss Nova Inglaterra no ano anterior, quando sua demonstração de talento fora girar um baliza em chamas ao som de "Hey, Look Me Over". Era cerebral, também; até a época de sua morte foi editora do jornal do colégio (um pasquim semanal com muitas caricaturas políticas e cartas bombásticas), membro da sociedade dramática estudantil e presidente da Fraternidade Nacional de Serviços, Seção de New Sharon. Na quente e feroz efervescência de meus tempos de calouro, eu apresentara ao jornal a idéia para uma nova coluna e convidara Ann Bray para sair comigo sendo rejeitado em ambas as coisas.

E agora ela estava morta... pior que morta.

Encaminhei-me para as aulas da tarde como todo mundo, cumprimentando com a cabeça as pessoas conhecidas e dizendo alô com um pouco mais de ênfase que o costume, como se isto compensasse o modo atento pelo qual eu lhes estudava os semblantes. Que era o mesmo modo pelo qual elas estudavam o meu. Havia algo sombrio entre nós, tão sombrio quanto as sendas que serpenteavam pelos bosques ou entre os carvalhos seculares no espaço atrás do ginásio. Tão sombrio quanto o vulto dos canhões da Guerra Civil avistado através da movediça membrana de nevoeiro.

Fitávamo-nos nos rostos e tentávamos decifrar a escuridão por detrás de um deles.

Desta vez, a polícia não prendeu ninguém. As "joaninhas" azuis patrulhavam incessantemente o campus nas enevoadas noites de primavera dos dias 18, 19 e 20, e os holofotes revistavam os cantos sombrios com errático entusiasmo. A administração impôs um toque de recolher obrigatório às nove horas. Um casal imprudente apanhado namorando nos arbustos do jardim ao norte do Tate Alumni Bufding foi levado à delegacia policial de New Sharon e impiedosamente interrogado durante três horas.

Houve um histérico alarme falso no dia 20, quando um rapaz foi encontrado inconsciente no mesmo estacionamento onde o cadáver de Gale Cerman fora achado.

Um afobado guarda que patrulhava o campus colocou-o no banco traseiro do carro e cobriu-lhe o rosto com um mapa do município, sem dar-se o trabalho de tomar-lhe o pulso; partiu às pressas para o hospital local, a sirene gemendo através do campus deserto como um bando de almas penadas.

A meio caminho do hospital, o cadáver no banco traseiro sentou-se e perguntou com voz atordoada:

― Onde, diabo, estou eu?

O guarda soltou um grito e deixou o carro sair da estrada. O cadáver, segundo se verificou, era um aluno do penúltimo ano que passara os dois últimos dias acamado com uma forte gripe ― não foi a gripe "asiática", naquele ano? Não me lembro direito. De qualquer forma, o aluno, que se chamava Donald Moais, desmaiou no estacionamento quando se encaminhava ao Grinder para tomar um prato de sopa com torradas.

Os dias continuaram mornos e nublados. As pessoas formavam pequenos grupos que mostravam uma surpreendente tendência para se desfazerem e tomarem a formar-se com grande rapidez. Olhar para o mesmo conjunto de fisionomias durante muito tempo provocava idéias estranhas a respeito de algumas delas. E a velocidade com que os boatos se espalhavam de uma extrernidade à outra do campus começou a aproximar-se da velocidade da luz; um professor de História muito querido pelos alunos fora ouvido rindo e chorando ao mesmo tempo perto da pequena ponte; Gale Cerman deixara uma enigmática mensagem de duas palavras, escrita com seu próprio sangue no asfalto do estacionamento da ala de Ciências Animais; ambos os crimes eram, na realidade, assassinatos políticos, mortes rituais levadas a efeito por uma ramificação da SDS em protesto contra a guerra no Vietnã. Isso era verdadeiramente ridículo. A SDS de New Aharan tinha sete membros. Uma ramificação de tamanho significativo equivaleria ao fim da organização. Tal fato causou uma invenção ainda mais sinistra por parte dos direitistas do compus: agitadores vindos de fora. Assim, durante aqueles dias esquisitos e mornos, todos nós nos mantivemos de olhos atentos contra eles.

A imprensa, sempre volúvel, ignorava a forte semelhança que nosso assassino apresentava com Jack, o Estripador, e bisbilhotou até uma época ainda mais remota ― até 1819. Ann Bray fora encontrada numa úmida senda de terra a cerca de quatro metros da calçada mais próxima e, apesar de tudo, não havia sinal de pegadas, nem mesmo suas.

Um empreendedor jornalista de New Hampshire apaixonado por coisas do passado batizou o matador de Jack Calcanhar-de-Mola em homenagem ao famigerado Dr. John Hawkins, de Bristol, que matara cinco de suas esposas com exóticos preparados farmacêuticos. E o apelido pegou, provavelmente por causa daquele solo molhado que, apesar de tudo, não apresentava marcas.

No dia 21 tornou a chover. A alameda e o espaço atrás do ginásio se transformaram em atoleiros. A polícia anunciou que espalharia pelo compus detetives à paisana ― homens e mulheres ― e retirou metade dos carros-patrulha.

O jornal do colégio publicou um editorial fortemente indignado, embora um tanto incoerente, protestando contra a medida. A essência do protesto parecia tomar por base o fato de que, com todos os tipos de policiais fazendo-se passar por estudantes, seria impossível distinguir entre um verdadeiro agitador vindo de fora e um policial disfarçado.

O crepúsculo chegou e, com ele, o nevoeiro, subindo vagarosamente pelas avenidas arborizadas, escondendo os prédios um a um. Era uma névoa macia, insubstancial, mas, de algum modo, implacável e assustadora. Jack Calcanhar-de-Mola era um homem e ninguém parecia duvidar disso, mas a névoa era sua cúmplice e era feminina... ou, pelo menos, assim me parecia. Era como se nosso pequeno colégio estivesse encurralado entre os dois, esmagado por um abraço de dois amantes, parte de um casamento que fora consumado com sangue. Fiquei sentado, fumando e observando as luzes se acenderem na crescente escuridão, conjeturando se tudo estaria terminado. Meu companheiro de quarto entrou e fechou silenciosamente a porta atrás de si.

― Vai nevar em breve ― disse ele.

Voltei-me para encará-lo.

― O rádio disse isso?

― Não ― respondeu ele. ― Quem precisa de meteorologista? Nunca ouviu falar em primavera vermelha?

Parou junto de mim, olhando para a escuridão que se tornava mais densa, lá fora.

― A primavera vermelha é como o verão índio, só que mais rara explicou. ― Aqui nesta região do país temos um bom verão índio a cada dois ou três anos. Um tipo de clima como o que estamos atravessando agora só ocorre em cada oito ou dez. É uma primavera falsa, mentirosa, como o verão índio é um verão falso. Minha avó costumava dizer que a primavera vermelha significa que o pior vento norte do inverno ainda está para chegar ― e quanto mais dura a primavera vermelha, mais forte é a tempestade que vem depois dela.

― Folclore ― repliquei. ― Não acredito numa só palavra.

Olhei para ele:

― Mas estou nervoso. E você?

Ele sorriu com benevolência e roubou um de meus cigarros do maço que estava sobre o peitoril da janela.

― Suspeito de todos a exceção de você e de mim ― respondeu. Então, seu sorriso se apagou um pouco: ― E às vezes tenho minhas dúvidas quanto a você. Quer ir ao Union jogar sinuca? Aposto dez pratas.

― Tenho prova preliminar de trigonometria na semana que vem. Vou sentar-me com um marcador mágico e uma pilha de anotações de aula.

Durante muito tempo depois que ele saiu só consegui olhar pela janela. E mesmo depois que abri o livro e comecei a estudar, parte de mim ainda continuou lá fora, andando nas sombras onde algo escuro agora imperava.

Naquela noite, Adele Parkins foi assassinada. Seis carros da polícia e dezessete policiais à paisana com aparência de estudantes (oito deles mulheres importadas de uma cidade longínqua como Boston) patrulhavam o campus. Contudo, Jack Calcanhar-de-Mola matou-a assim mesmo, atacando sem erro uma de nossas colegas. A falsa primavera, a primavera mentirosa, ajudou-o e agiu como sua cúmplice ― ele matou Adele e deixou-a recostada no banco, ao volante do carro, do seu Dodge 1964, para ser encontrada na manhã seguinte. Acharam parte dela no banco traseiro e outra parte no porta-malas.

Escritas a sangue no pára-brisas desta vez de fato, em vez de boato ― estavam duas palavras: HA! HA!

Depois disso, o campus enlouqueceu silenciosamente; todos nós e nenhum de nós conhecêramos Adele Parkins. Era uma daquelas mulheres anônimas atormentadas que trabalhavam no Gringer durante o estafante turno das seis às onze da noite, enfrentando hordas de alunos famintos de hambúrgueres nos intervalos das aulas ou vindos da biblioteca situada no outro lado da rua. Deve ter levado uma vida mais fácil naquelas três últimas noites enevoadas de sua vida; o toque de recolher estava sendo rigorosamente observado e, depois das nove horas, os únicos fregueses do Grinder eram os policiais famintos e os faxineiros satisfeitos ― os prédios vazios à noite haviam melhorado consideravelmente sua costumeira rabugice.

Pouco resta a contar. A polícia, com tanta tendência à histeria quanto qualquer um de nós e imprensada contra a parede, prendeu um inofensivo homossexual aluno do último ano de sociologia, chamado Hanson Gray, que alegava "não conseguir lembrar-se" de onda passara várias das noites fatídicas. Ficharam-no, pronunciaram-no e o puseram em liberdade para regressar apressadamente à sua cidade natal em New Hampshire depois da inominável última noite da primavera vermelha, quando Marsha Curran foi assassinada na alameda arborizada.

Nunca se saberá por que motivo ela saiu sozinha ― era uma gordinha tristemente bonita que morava num apartamento da cidade com três outras moças. Esgueirara-se para o interior do campus tão silenciosa e facilmente quanto o próprio Jack Calcanhar-de-Mola. O que a trouxera até ali? Talvez sua necessidade fosse tão profunda e ingovernável quanto a do assassino. E tão além de toda e qualquer compreensão. Talvez a necessidade de um desesperado e apaixonado romance com a noite morna, o nevoeiro morno, o cheiro do mar e o punhal frio.

Isso foi no dia 23. No dia 24, o reitor do colégio anunciou que as férias da primavera seriam antecipadas de uma semana e nós nos dispersamos, não alegres como são os estudantes em férias, mas como carneiros assustados fugindo à tempestade, deixando o campus vazio e ocupado apenas pela polícia e por um espectro sombrio.

Eu tinha meu próprio carro e dei carona para seis pessoas que iam no mesmo rumo que eu, as bagagens entulhadas de qualquer maneira. Não foi uma viagem agradável. Por tudo o que qualquer um de nós sabia, Jack Calcanhar-de-Mola bem poderia estar conosco naquele carro.

Naquela noite, o termômetro baixou quinze graus e toda a área setentrional da Nova Inglaterra foi fustigada por uma terrível tempestade vinda do norte, que começou com granizo e terminou com mais de trinta centímetros de neve. O costumeiro número de pessoas idosas sofreu ataques cardíacos limpando a neve das calçadas ― e então, como num passe de mágica, chegou abril. Chuvas limpas e noites estreladas.

Chamam de primavera vermelha. Só Deus sabe por que motivo. É uma época nefasta e mentirosa, que só aparece uma vez em cada oito ou dez anos. Jack Calcanhar-de-Mola partiu com o nevoeiro e, no início de junho, as conversas no campus se voltaram para uma série de protestos contra a convocação para o serviço militar e uma demonstração diante do prédio onde um conhecido fabricante de napalm entrevistava candidatos a emprego. Em junho, o assunto de Jack Calcanhar-de-Mola foi quase unanimemente evitado ― pelo menos em voz alta. Desconfio que muitos faziam muitas conjecturas em particular, buscando uma rachadura no ovo aparentemente íntegro da loucura que daria sentido a tudo aquilo.

Foi naquele ano que me formei e, no ano seguinte, eu me casei. Um bom emprego numa editora local. Em 1971 tivemos um filho que agora está quase em idade escolar. Um ótimo menino, inteligente, que tem os meus olhos e a boca da mãe.

Então, o jornal de hoje.

Claro que eu sabia que ela voltara. Soube ontem de manhã, quando acordei e escutei o misterioso barulho da neve derretida escorrendo nas calhas e senti o cheiro salgado do oceano em nossa varanda da frente, que fica a quinze quilômetros da praia mais próxima. Soube que a primavera vermelha voltou quando saí do trabalho ontem à noite e tive que acender os faróis contra a névoa que já começava a se espalhar pelos campos e ravinas, dissolvendo os contornos dos prédios e formando halos fantasmagóricos em torno das lâmpadas dos postes.

O jornal desta manhã diz que uma jovem foi assassinada no campus de New Sharon, perto dos velhos canhões da Guerra Civil. Foi assassinada na noite passada e encontrada sobre um monte de neve que começava a derreter-se. Ela não... ela não estava toda ali.

Minha mulher está perturbada. Quer saber onde eu estive ontem à noite. Não posso dizer porque não me recordo. Lembro-me de ter saído do trabalho para casa, como me lembro de ter acendido os faróis para procurar meu caminho através do adorável nevoeiro que começava a espalhar-se. Mas isso é tudo de que me lembro.

Estive pensando naquela noite enevoada em que senti dor de cabeça e andei para respirar o ar livre, passando por todas as lindas sombras desprovidas de forma ou de substância. E estive pensando na mala do meu carro ― que palavra feia, mala ― e imaginando por que motivo neste mundo eu teria medo de abri-la.

Enquanto escrevo, posso ouvir minha mulher chorando no quarto ao lado. Pensa que estive com uma mulher ontem à noite.

E, oh, meu bom Deus, eu também penso que estive.

Um comentário:

  1. Ótimo conto, o li pela primeira viz no livro Sombras da Noite mas ainda não perco o prazer de ler.

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